Epitáfio do homem Vitor Ribeiro

Vitor, finalmente conseguiste parar de pensar,
finalmente.
Agora posso te ver por inteiro,
posso te ver de verdade,
rodeado por tua alma dorescura
enfim liberta da obrigação
de girar, de abraçar, de amar o mundo.

Vitor, agora todas primaveras são
somente
primaveras;
e a rosa
extrarosa, metarosa, além-rosa
se torna
uma flor
e apenas
uma flor
sem ti.

Deixaste em tua herança
teu baú roto
companheiro de vida:
Teu coração
(o que se diz coração);
tua poesia,
ou o que se diz poesia;
tuas palavras,
as mesmas que cabem na boca de outrem.
Teu baú espera,
só serve para esperar
enquanto os negócios, 
os homens de negócios,
os ócios dos homens de negócios
não virão jamais.

Vitor, que ironia
ser tua morte
a única forma
de ver-te
no limite
da palavra.
E mais,
não nas tuas palavras,
mas naquelas que convêm,
afagam,
esquecem.

Você certamente sorri,
daqui mesmo te vejo sorrindo
pela primeira vez em sua tácita existência.
Por que não sorrias?
Não nos julgava dignos dos teus dentes?
Não querias estar desarmado?
Simplesmente não sabias?
De todo modo, Vitor
teu sorriso,
se vejo e não imagino,
é tua mais plena remissão
e alivia a cidade atenta.
Mas, e se apenas imagino?
Será que consigo-consegues dormir
em paz?

Por fim, Vitor Ribeiro já morto,
Olhos frios e purulentos,
Mãos eternamente gélidas,
Memória inconsciente popular,
termino meu moribundo discurso
antes que tu levantes
esbaforido.
Agora é chegado o teu limiar
e como todo óbvio é abstrato,
é chegado o teu limiar
e só agora você poderá ir
para então ficar-
palavra
mente.


Poema Imperfeito

Todas as manhãs,
-meu fardo e minha glória-
recomeço a escrever
só.

As mãos, em sua consciência de mãos,
querem palavras sobre palavras;
o coração, não.
Seu interesse é dizer todo o invisível
todo o profano
(no seu vagar sagrado)
em dois ou três versos certos
sempre com aliterações.

O primeiro verso vem
como um efeito colateral
do ato de existir,
simplesmente inesperado
mesmo sendo protocolo.
Segue-se o adjetivo que sonhei
mas que não tem palavra
para se expressar
e somente
brilhará.

A estrutura, crio e implodo
me subjugo a tudo e,
tolo,
sonho em ver o completo crescer
da obra ideal
entre o ocaso e o acaso
e durmo
na certeza de que te criar é possível,
ainda que aos poucos:
mudo-te,
todos os dias,
te mudo
e talvez até
te ame
em tudo o que há
e principalmente
no que não haverá.
No escrever me vejo argonauta,
me vejo Ulísses, me vejo Quixote
e me redimo dos nomes
ao venerar
diapósdia
tua ausência de título
tua presença em tudo.

Todas as manhãs,
-meu fardo e minha glória-
recomeço a te escrever
só.


Quatro fotografias da cidade onde nunca morei

I

Se no meio dos festejos de alguma data
tens algo que insiste em pungir
ou em resistir ao frio das horas,
não perca a calma:

Lance um foguete-de-lágrimas,
cuja beleza iguala alegria e dor
como partes naturais de nós,
e celebre todos os meandros
que há entre o viver
e o estar-vivo.

II

Sobem a montanha
descem a montanha
tornam a subir.

Bebem água,
comem algo,
rezam pelo fim.

Se encontram,
riem cálidos
perguntam por ti.

Correm,
afinal choveu
e ao final nascerá.

Eu, parado, admiro
pois sequer desconfiam
do que seja
a própria vida.

E, por Deus,
quem me dera não saber.


III

Poço dos milagres
cuja mera existência
é um milagre-em-si.

IV

Senhor,
o passado
só é místico
por ter passado.

Senhora,
a invenção
é a vida
em arte.

Senhor,
o tempo nos marca
como marcamos
o tempo.

Senhora,
até a sorte
tem algo de
essencial.

Velha terra,
não me devolva nunca
nunca
o meu coração





Mapa

Se um dia você ouvir
alguém perguntar por mim,
não diga nada
pois
conhecer é entender
quando se trata de alguma
palavra.

Tu sabes,
(sim, tu sabes)
que ainda vago de coração em coração
e que estou mesmo sem estar.

Dispense as missivas,
as lanternas,
as vaias,
porque é no sempre que eu me encaixo
e é lá onde permaneço
eternamente
(c)alado.

Gente

Uma pessoa a escrever algo
(na noite escura).
Uma pessoa a desejar algo
(no dia doze do seis).
Uma pessoa a amar algo
(no pé-do-ouvido de alguém).

Juntas,
formam uma cor clara
que logo se vê
insurgir sem pudor:

Por aqui, se diz "constelação",
a guiar qualquer navio
de qualquer bandeira
em qualquer região.

Por lá, vivem
sem sequer suspeitar
da lógica etérea
das coisas desta vida.

Como Esquecer

Como esquecer
se tudo
tudo
é atemporal?
Se resiste
insiste
existe
enquanto somos nós?

Como esquecer
se já floresceu
por já ter chovido?
E se viver é
realmente
cíclico,
como esquecer?

Por que esquecer se,
no ermo passado,
nos construímos
eternos?

Onde esquecer
se este mundo
ainda
é parte de nós?

O que hoje passa despercebido
(entre vielas e sentimentos)
outras retinas fadigadas
não esquecerão.

Tantos

Me sinto

(
nímio mundo iluminado,
me dá gosto no cheiro
me dá imagem no som
me dá vazio no excesso
e cegueira na luz
sem jamais chegar a mim:
lacuna entre braços
existência entre pretensões.
Hoje não há redenção
Hoje o segredo da vida será
acreditar
que há, ainda, um segredo na vida.
)

só.