Ato III - Poeta mantém estável solilóquio entre os carros


Quando te construíram, homem,
Eu estava lá.
Vi que emergiste junto com o amor, como o amor,
Pelo amor, para o amor.
Dos cantos lúgubres, de algum sonho proibido,
Quase imperceptível, mas senhor de si.

E hoje, para o que olho?
Fragmentos, memórias, pudor?
Tu refazes diariamente seu meio,
Moldas todos ao seu redor,
Sentes vontades de qualquer forma de liberdade,
E ainda não sabes qual é a sua prisão.
Ela, pois, é o mais lúcido dos anjos,
O mais nobre dos sorrisos,
A única razão de tua vida:
A imensidão perene do morrer.

Ato II: Poeta tenta contactar homem e é impedido pelo tráfego


Em nada inspira-me uma cidade.
Em tudo a cidade é inspirada:
Cresce, arranha o céu,
Endurece, arranha o homem.

Vejo-te deslocado em si,
Tentas humanizar o que tocas,
Nada compensará.
Deus não atravessará a rua.
O amor não nascerá na calçada.
Nenhum auto te entenderá.

Ato I: Poeta encontra homem perdido em si


Abraçou-me uma escuridão.
O ar da cidade pesa toneladas,
A alma do ser paira n’algum lugar,
Uma sinalização luminosa não conduz a canto algum:
Já é um templo em si.

Não me comove o sepultamento coletivo,
Dá aval ao avanço do trem, do carro, do avião.
Um céu chora burocraticamente.
Um solo não tem por que absolver.
Um homem não tem pelo que morrer.

Nunca teremos uma parte desse infindável latifúndio.
Inexistimos, homem.
E ao mesmo tempo brilhamos
(na avenida, na gasolina, na margarina).

Somos fragmentados, homem.
Perco minha batalha para ganhares a sua.
Vivemos por alguns dias, moldaram-nos em puro ouro,
Fomos adquirido e hoje somos bibelô.
Estamos impassíveis, homem.
Imersos em sorte,
Inertes,
Fundamentados e refundamentados.

Tudo está na mais perfeita ordem.
A vida é bela em letras garrafais.

O Sonho do Poeta


Ser inócuo e, ainda sim,  o que há de mais pulsante na Terra.
Ficar conscientemente pasmo ao ver o mundo que floresce em si.
Ter a utilidade contestada pela onipresença.
Por vezes se camuflar em meio a coisas da vida.
Ter uma solidez exterior intransponível.
Saber que há milhares como si.
Saber que não há nenhum como si.
Ser percebido apenas em um olhar atento tendo estado lá o tempo inteiro.

Afinal, o sonho do poeta é ser uma pedra ao lado do caminho?

Homem no Espelho


Apenas olhe para mim
Eu sou um dia ensolarado
e não se preocupe comigo
apenas saiba o que eu sou.
-
E deixe que eu respire algo do seu ar
e que eu tente sentir sua presença
e permita adentrar nos seus meandros
e me absolva do fato de eu ser eu.
Me eleve a semi Deus
me rebaixe a rastro de olhar
então me acorde deste sonho ruim.
-
E não me permita sair
entrei?
E me difame com um sorriso
Se o merecer.
E se orgulhe de me ter
Cabedal ou alicerce?
-
Realce que certos sonhos não são feitos para se realizar
para sorte da humanidade
e meu azar.

Felicidade


E  a mim, que fui ostracizado por todos
Todos exatamente iguais a mim
Todos vítimas dos seus próprios dedos em riste
Que um dia já apontaram a outrem
E que já previram um suposto naufrágio
Em águas tão rasas quanto às da vida.
-
E a mim, cujo barco só conhece as águas da alma
Cujas velas não funcionam por terem idiossincrasias
Tive o rosto escarrado.
Escarrado pelos próprios filhos do escarro
De cima de um muro de incertezas
Construído sobre os restos indiferentes e indefiníveis
Daqueles que sentiram a dor e caíram por pena de si.
-
E a mim, atingido pelo coitadismo de vidas
Que jamais tiveram um grão a mais do que eu
Mas que tem os mesmos grãos dos seus irmãos
Não tocam a mim com suas promessas
De caridades, de calmaria e unção
Mas todos somos reféns de nossas felicidades!
[falhas, efêmeras, mesquinhas].
-
E a mim que optei pela bala que perfura o crânio
Que lança ao chão e revela o que somos nós
[não o que poderíamos ser, nem o que fomos]
Enquanto assisto a todos que conheci
Fingirem que não há dores
Com a boca no cano de sua arma de felicidade.
-
A mim, meus caros irmãos
Reservem um pouco do desprezo e asco
E me deixem estirado no chão, acéfalo
Rastejando no que sou, espectador das brincadeiras
Nos ecos, nos risos, nas glórias que jamais valeram algo.
-
Meus caros irmãos, quiçá um dia sintam a bala penetrar a garganta
E então olhem os bilhões ao redor:
Sim, nós estamos todos sós.

Não,



Eu não me lembro.
Eu jamais me lembraria.
Eu não poderia me lembrar.
Eterna elegia do eterno carnaval: estar.
Tento a redenção balanceando a vivência
A balança é inalterável:
Se a morte é suave como uma pluma
A vida é irrelevante como um homem.
Já é tarde, fui seduzido pela noite
Estive aqui, outrora
Procurei refúgio, alguém
Deu-me outro mundo consolo
Tentou-me definir o indefinido.
Não, um homem pode fugir da vida,
Pode fugir dos homens,
Pode fugir da sorte,
Jamais da frieza pulsante de si.
Tão inexplicável quanto a auto-piedade,
Tão cega quanto o conforto do colo de Deus.
Talvez eu me lembre de mim,
Não, eu não me lembro.
Eu me perdi em todas as esquinas que passei.
Eu me deixei levar por qualquer golpe de ar, pois
Se se algum homem sabe amar
Sabe que amar convém ao corpo como a liberdade convém à alma.
E eu estou preso à ânsia por me sentir [livre?]
Não, nenhum mundo tangível jamais me definirá
Nem eu subverterei nenhum mundo a mim.
Insensatez? Não, pois aflige-me o caminhar das formigas,
Pois irrita-me o nascer das estrelas mortas,
Pois toca-me o peso da alma.  [porém]
Ainda me encontro vivo, sim, ali.